terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Grandes Olhos


Ontem assisti ao mais recente filme de Tim Burton, que não conta nem com a presença de sua ex-mulher Helena Carter, nem de seu filho adotivo ainda em julgamento de guarda Johnny Depp. A sinopse refere-se a uma artista chamada Margaret Ulbrich, que tem o trabalho de sua vida roubado pelo então marido Walter Keane. Eles se envolvem em um momento de vulnerabilidade, em que Margaret encontra-se divorciada (problema 1) e com a guarda da filha (problema 2) sendo requisitada pelo ex-marido (problema 3), nos anos 50 (problema 4). Um jeito fácil de resolver o problema é casando-se novamente, o que ela faz sob promessas de amor de Walter Keane (problema 5). Ele começa a alegar publicamente que foi ele quem pintou os quadros e dotado de uma lábia extraordinária, convence Margaret de que ela, como mulher, não chamaria atenção, não venderia quadros nem faria sucesso. Quando o trabalho da esposa desponta e passa a gerar grande dinheiro, Margaret está presa em uma teia muito densa de violência psicológica. Ela passa vários anos vendo o marido levar nome pelo seu trabalho sem conseguir fazer qualquer movimento, mas sofrendo as consequências emocionais. Isola-se dos amigos, tem uma vida carcerária e compromete seu relacionamento com a filha para encobrir as mentiras do marido que a faz descaracterizar-se como pessoa. Na história da arte há inúmeros exemplos como esse. O mais famoso talvez seja o de Camille Claudel e Rodin, para citar um (não sou especialista no assunto). Na ciência, várias mulheres tiveram suas obras plagiadas por professores, orientadores, maridos. Mas por que uma pessoa se submeteria a isso? Ela é burra? Essas perguntas eu me fiz ao longo do filme e depois me senti burra por fazê-las. É muito comum o discurso de que as vítimas sejam culpabilizadas pela própria violência que recebem, vide Marcha das Vadias (usar determinada roupa, estar sozinha, ou frequentar determinado lugar, a determinada hora não deve ser justificativa de estupro). Mas na verdade elas são vítimas e o foco deve ser na culpabilização do agressor e não da vítima (no caso do filme, Walter Keane, que criou e alimenta o ciclo de violência psicológica). Analisando os “problemas” que enquadrei acima, temos uma mulher divorciada, o que talvez possa ser visto como o primeiro grande fracasso social (tanto em termos de status como financeiros), em uma época que divórcio era novidade (talvez ainda hoje? Quais estereótipos de mulher divorciada você consegue pensar?). O segundo problema foi ter uma filha, que representa uma barreira econômica (mais uma boca para alimentar) e talvez com o perdão do termo, laboral, posto que ela teria que encontrar alguém para tomar conta da menina enquanto trabalhasse. O terceiro problema é a disputa pela guarda, principalmente em um momento (questiono o fim desse momento) em que o homem tem esmagador poder social para consegui-la, principalmente sob a alegação de que a ex-esposa não tem condiçõe$ para criar a filha. O quarto problema é o contexto sócio-cultural dos anos 50 e quais suas implicações sobre ética e direito, sem falar nas retaliações sociais. Lembrando que anos 50 é ontem, vovó já era nascida. O quinto problema é o contrato social que ela faz com um homem que jura amor (ela tinha acabado de se separar) e apresenta-se como um meio de resolver todos os problemas anteriores. O nome disso é vulnerabilidadeS (tenho que usar o plural). Pelo menos ela deu a sorte de ser branca e pertencente a uma classe social privilegiada que a deu oportunidade de desenvolver um ofício. Estabelece-se aí um contrato social de dívida, que mais tarde pode ser relacionado com a aceitação dos termos e condições que dizem respeito à falsa autoria das obras. Talvez fosse mais fácil se 1-Ela não fosse divorciada; 2- Ela não tivesse filhos; 3- Ela não teria nenhuma guarda a solicitar; 4- Não vivesse nos anos 50; 5- Não dependesse de um terceiro para resolver seus problemas; e, claro, devo acrescentar 6: fosse homem. Problemas acabados.
É, realmente. Isso é muito distante da nossa realidade, aconteceu há muito tempo, nos anos 50, época em que as mulheres não tinham direitos. Afinal, hoje o trabalho doméstico é igualmente dividido, divórcio e solteirisse são amplamente aceitos e tidos como iguais para homens e mulheres. A criação dos filhos é igualmente dividida sem que nenhum dos conjugues seja menosprezado por qualquer razão que seja e ainda, ter filhos tem a mesma carga social e implicações laborais para homens e mulheres (como contratações e... esqueci que homens e mulheres recebem o mesmo salário pelo mesmo serviço). Só que não. Ou eu vivo mesmo em marte?

Talvez isso seja uma novidade, mas esse é um blog feminista. Não é sobre feminismo, mas é feminista. Se você quiser ler mais sobre este nível de violência, chamado de “gaslightning”, clique aqui e aqui. Essa foi a primeira ilustração de filmes do ano, então vem mais por aí!