Ontem assisti ao mais recente filme de Tim
Burton, que não conta nem com a presença de sua ex-mulher Helena Carter, nem de
seu filho adotivo ainda em julgamento de guarda Johnny Depp. A sinopse
refere-se a uma artista chamada Margaret Ulbrich, que tem o trabalho de sua
vida roubado pelo então marido Walter Keane. Eles se envolvem em um momento de
vulnerabilidade, em que Margaret encontra-se divorciada (problema 1) e com a
guarda da filha (problema 2) sendo requisitada pelo ex-marido (problema 3), nos
anos 50 (problema 4). Um jeito fácil de resolver o problema é casando-se
novamente, o que ela faz sob promessas de amor de Walter Keane (problema 5). Ele
começa a alegar publicamente que foi ele quem pintou os quadros e dotado de uma
lábia extraordinária, convence Margaret de que ela, como mulher, não chamaria
atenção, não venderia quadros nem faria sucesso. Quando o trabalho da esposa
desponta e passa a gerar grande dinheiro, Margaret está presa em uma teia muito
densa de violência psicológica. Ela passa vários anos vendo o marido levar nome
pelo seu trabalho sem conseguir fazer qualquer movimento, mas sofrendo as
consequências emocionais. Isola-se dos amigos, tem uma vida carcerária e
compromete seu relacionamento com a filha para encobrir as mentiras do marido
que a faz descaracterizar-se como pessoa. Na história da arte há inúmeros
exemplos como esse. O mais famoso talvez seja o de Camille Claudel e Rodin,
para citar um (não sou especialista no assunto). Na ciência, várias mulheres
tiveram suas obras plagiadas por professores, orientadores, maridos. Mas por
que uma pessoa se submeteria a isso? Ela é burra? Essas perguntas eu me fiz ao
longo do filme e depois me senti burra por fazê-las. É muito comum o discurso
de que as vítimas sejam culpabilizadas pela própria violência que recebem, vide
Marcha das Vadias (usar determinada roupa, estar sozinha, ou frequentar
determinado lugar, a determinada hora não deve ser justificativa de estupro).
Mas na verdade elas são vítimas e o foco deve ser na culpabilização do agressor
e não da vítima (no caso do filme, Walter Keane, que criou e alimenta o ciclo
de violência psicológica). Analisando os “problemas” que enquadrei acima, temos
uma mulher divorciada, o que talvez possa ser visto como o primeiro grande
fracasso social (tanto em termos de status como financeiros), em uma época que
divórcio era novidade (talvez ainda hoje? Quais estereótipos de mulher
divorciada você consegue pensar?). O segundo problema foi ter uma filha, que
representa uma barreira econômica (mais uma boca para alimentar) e talvez com o
perdão do termo, laboral, posto que ela teria que encontrar alguém para tomar
conta da menina enquanto trabalhasse. O terceiro problema é a disputa pela
guarda, principalmente em um momento (questiono o fim desse momento) em que o
homem tem esmagador poder social para consegui-la, principalmente sob a
alegação de que a ex-esposa não tem condiçõe$ para criar a filha. O quarto
problema é o contexto sócio-cultural dos anos 50 e quais suas implicações sobre
ética e direito, sem falar nas retaliações sociais. Lembrando que anos 50 é
ontem, vovó já era nascida. O quinto problema é o contrato social que ela faz
com um homem que jura amor (ela tinha acabado de se separar) e apresenta-se
como um meio de resolver todos os problemas anteriores. O nome disso é
vulnerabilidadeS (tenho que usar o plural). Pelo menos ela deu a sorte de ser
branca e pertencente a uma classe social privilegiada que a deu oportunidade de
desenvolver um ofício. Estabelece-se aí um contrato social de dívida, que mais
tarde pode ser relacionado com a aceitação dos termos e condições que dizem
respeito à falsa autoria das obras. Talvez fosse mais fácil se 1-Ela não fosse
divorciada; 2- Ela não tivesse filhos; 3- Ela não teria nenhuma guarda a
solicitar; 4- Não vivesse nos anos 50; 5- Não dependesse de um terceiro para
resolver seus problemas; e, claro, devo acrescentar 6: fosse homem. Problemas
acabados.
É, realmente. Isso é muito distante da nossa
realidade, aconteceu há muito tempo, nos anos 50, época em que as mulheres não
tinham direitos. Afinal, hoje o trabalho doméstico é igualmente dividido,
divórcio e solteirisse são amplamente aceitos e tidos como iguais para homens e
mulheres. A criação dos filhos é igualmente dividida sem que nenhum dos
conjugues seja menosprezado por qualquer razão que seja e ainda, ter filhos tem
a mesma carga social e implicações laborais para homens e mulheres (como
contratações e... esqueci que homens e mulheres recebem o mesmo salário pelo
mesmo serviço). Só que não. Ou eu vivo mesmo em marte?